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Diálogo e articulação com movimentos sociais Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso

9ª edição do Tapiri Ecumênico e Inter-religioso chega ao Acre

22 de julho de 2025

A lua refresca a noite. E o sol aquece o dia.
Vou contar uma história em forma de poesia.

Sou índio, sou seringueiro, sou um posseiro, sou um acampado, sou um ribeirinho, sou um pescador.
Sou um camponês, sou um nativo da região.

Sou um quilombola cansado, que enfrenta chuva, sol, rios, lagos e represas.
Vivo na natividade, preservando a natureza, para que nunca falte aos meus filhos alimento saudável na mesa.
Mas hoje, é a nossa mãe terra — linda, rica e bela — que chora de tristeza, pois enfrenta uma nova era, vendo o sangue dos seus filhos derramado sobre ela.
O clima descontrolado, o fogo queimando a floresta. As águas contaminadas, frutos dos grandes projetos.
E, quanto mais o tempo passa, piora a situação.
E os agressores da natureza são nossos próprios irmãos, que não preservam nem respeitam essas maravilhas feitas pelo Rei da Criação.

Terra e água, fontes de vida. Base de toda nação.
Onde se planta feijão, arroz, mandioca e milho.
Onde eu fui criado e milhões de brasileiros também criaram seus filhos.

Mas, já hoje, diminui a esperança. Está aumentando a ganância.
Onde era verão, está virando inverno.
Onde era paraíso, está se tornando inferno.

As famílias desestruturadas, os pobres reclamam e dizem:
“Tô perdendo a esperança num país justo e feliz.”

Mas essa é a nossa história, na luta do dia a dia.
Se eu errei, alguém me ajude na letra e na melodia.
                                                Cosme Capistrano da Silva

A poesia acima, de Cosme Capistrano da Silva/CPT – Acre, é uma reflexão poética sobre a vida das populações que habitam territórios afetados pelos fundamentalismos religiosos, políticos e econômicos, e que lutam pela manutenção da terra e dos seus direitos. Estas lutas foram amplamente retratadas durante o 9º Tapiri Ecumênico e Inter-religioso, promovido pela CESE em Rio Branco (AC), com apoio da Fundação Ford.

A palavra “Tapiri”, de origem tupi, evoca a imagem de uma cabana simples — um espaço de encontro e acolhimento. No contexto do trabalho da CESE, o Tapiri Ecumênico e Inter-religioso representa um ambiente acessível, onde indivíduos e grupos de diversas expressões baseadas na fé e denominações cristãs se reúnem para estabelecer conexões, por meio do diálogo e da partilha.

Acreditamos que a força da espiritualidade é o que nos conecta. E assim chegamos ao nosso 9° Tapiri no Acre. “A CESE, com outras organizações, busca encontrar meios de enfrentamento para tantas dificuldades que passamos. Já percorremos nove estados da Amazônia Legal e vamos apresentar o que constatamos desta caminhada e diálogo no grande Tapiri da COP30, em Belém, em novembro deste ano”, afirmou Sônia Mota, diretora-executiva da CESE.

Realizado entre os dias 14 e 16 de julho, o encontro reuniu grupos populares, movimentos sociais, igrejas, povos de terreiro, comunidades tradicionais, quilombolas, indígenas, mulheres negras, jovens e população LGBTQIAPN+e representantes do Ministério Público e Defensoria Pública Estadual.

Espaço de trocas e escutas potentes

Como os fundamentalismos religiosos têm impactado o diálogo ecumênico e inter-religioso no Acre? Como os fundamentalismos afetam os movimentos de mulheres, comunidade LGBTQIAPN+ e juventudes? Como os fundamentalismos afetam os povos indígenas e as comunidades tradicionais? “Como o fundamentalismo tem afetado as lutas populares por diretos? Estes foram alguns dos temas abordados nas mesas temáticas.

Para Ninawa Inu Pereira Nunes Huni Kui, da Federação do Povo Huni Kui do Estado do Acre: “Não há um ser humano separado da natureza. Não há divisão entre terra, floresta, entre os seres das águas. Não há desconexão com o verdadeiro mundo. No Acre, várias denominações religiosas estão adentrando nossos territórios, e isso provoca a negação dos jovens e o rompimento com o seu povo. Queremos respeito. É preciso considerar o fundamentalismo como crime e ameaça às nossas comunidades.”

Almerinda de Souza Cunha Oliveira, da Associação de Mulheres Negras do Acre, ressaltou os danos trazidos pelos racismos e fundamentalismos para as mulheres negras: “Os fundamentalistas — sejam religiosos, econômicos ou políticos — prejudicam nossas lutas sociais, atacam nossas comunidades, nossas liberdades, religiosidades e igualdade de gênero. O fundamentalismo religioso usa o nome de Deus contra nós. O que eles querem é se manter no poder. ”

As mesas também contaram com a participação do Promotor de Justiça, Direitos Humanos e Cidadania, Dr. Thalles Ferreira e da Defensora Pública Alexa Cristina, dos núcleos de Defesa Ambiental, Habitação, Urbanismo e Conflitos Agrários e do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos dos Povos Indígenas, da População Negra e das Minorias Étnicas.

O promotor, a partir das escutas, destacou: “Como disse o Pajé, nossos saberes precisam ser respeitados, descolonizados. Onde fomos massacrados e inviabilizados, os saberes foram apagados — e hoje estamos no resgate desses saberes. Não acredito que exista uma educação antirracista dentro do capitalismo, onde ele quer explorar nossos corpos. As formas de viver, de saber, de se curar, de ter contato com o próximo, do sistema de justiça — tudo já está colocado na natureza.

A Defensora Pública, Dra. Alexa Cristina destacou: “Nós vivemos esse racismo que é fruto de uma retomada de poder. Para retomarem o poder, eles precisam esmagar as minorias, tirar direitos das mulheres, dos indígenas — porque, infelizmente, tudo é uma questão econômica. E para o fundamentalismo resistir, ele precisa derrubar as lutas. Vocês precisam acreditar nos seus direitos. Se as autoridades não fizerem, denunciem, façam manifestações, não percam a sua voz. ”

 ‘’Cheguei ao Acre há 54 anos e logo percebi muitos conflitos religiosos e pela posse de terra. O TAPIRI que encontro aqui é um céu de riquezas culturais, religiosas e de afirmação da luta pelos direitos’’, afirmou Padre Mássimo, do Centro Ecumênico Fé e Política (IEFPAC).

Visita à Tenda de Umbanda Luz da Vida

Na noite do dia 15, foi realizada uma visita inter-religiosa à Tenda de Umbanda Luz da Vida, com objetivo de demonstrar como o racismo religioso destrói o que há de essencial nas tradições de fé: a capacidade de nos reconhecermos como irmãos e irmãs — diferentes em raça, gênero e religião —, mas unidos pelo amor que recebemos de Deus.

Mãe Marajoana, que recebeu o grupo, declarou: “Você acredita em Deus? Então, por que nasceu o fundamentalismo? Para quê falar que todos nós temos direitos, se eu não tenho o direito de andar com a minha guia? Estamos aqui para sermos espiritualistas. Quando todos aprenderem apenas essa religião — ‘Amai-vos uns aos outros como Deus nos amou’ — estaremos curados do fundamentalismo. Minha causa aqui é pela criança, porque depois da criança vem o jovem, depois o ancião. Se não começarmos por ela, não teremos boas histórias. Axé, Saravá, Shavá Shavá, Amé, e todos os mantras que te levam ao teu eu interior.

‘Essa vivência de diálogo inter-religioso com movimentos e segmentos sociais, em defesa de um ecumenismo pelos Direitos Humanos e Socioambientais, é uma experiência indescritível. Sinto que esse diálogo respeitoso é a articulação necessária para fortalecer a luta contra os fundamentalismos religiosos, políticos e econômicos. Ele renova em nossos corações o espírito de luta, a coragem e a fé.”, afirmou Bianca Daébs, assessora de projetos, ecumenismo e diálog inter-religioso da CESE.

Conflitos por terra no Acre

O Acre registrou 59 conflitos por terra em 2024, segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT). O estado está entre os dez com maior número de ocorrências desse tipo. Também houve um aumento no número de ameaças de morte no campo — 272 casos — o maior em dez anos: “Todo ano a CPT lança o Caderno de Conflitos, carregado de informações. Não queríamos estar divulgando esses relatos, mas é a realidade. O Acre sempre foi um estado pacato nas comunidades, mas hoje está tomado por facções criminosas. Em algumas, somos recebidos a tiros. Vivemos sob constantes ameaças. Não somos números — somos gente, pais e mães de família”, afirmou Darlene Braga, da CPT/Acre.

Roda de diálogo na Reserva Extrativista Chico Mendes

O  Tapiri encerrou sua programação no dia 16, com uma visita à Reserva Extrativista Chico Mendes, localizada na região sudeste do estado. Criada em 1990, a Resex Chico Mendes possui cerca de 970 mil hectares e é uma unidade de conservação de uso sustentável, onde populações tradicionais têm o direito de viver e extrair recursos naturais de forma equilibrada. No entanto, a área enfrenta graves ameaças: é atualmente a 5ª unidade de conservação mais desmatada da Amazônia, com 549 km² desmatados entre 2008 e 2024. Só neste ano, o desmatamento já alcança 43,48 km² — um aumento de 25% em relação ao total de 2023 (34,81 km²), segundo dados do (Inpe).

A programação iniciou com uma visita à Casa de Chico Mendes, em Xapuri, onde viveu e foi assassinado o seringueiro, sindicalista e defensor dos direitos humanos que se tornou símbolo internacional da luta pela floresta e pelos povos da Amazônia. O local abriga um acervo histórico sobre o trabalho dos(as) seringueiros(as) e mantém viva a memória de sua luta. Mais de três décadas após seu assassinato, os ataques aos extrativistas continuam. Em junho deste ano, após uma operação do ICMBio para retirada de gado ilegal da reserva, novas ameaças e agressões foram registradas contra trabalhadores e lideranças locais.

Em solidariedade e denúncia a essa realidade, uma roda de diálogo foi realizada com a comunidade local, com a presença de extrativistas e do seringueiro Raimundo Mendes de Barros, primo de Chico Mendes, conhecido como “Raimundão”. Ele relatou as violações de direitos enfrentadas pelos extrativistas e os ataques que tem sofrido por denunciar essas situações e destacou o papel de Chico em defesa da floresta:Chico Mendes foi um grande companheiro e mártir da luta. Ele teve habilidade na aproximação com os povos indígenas. A união entre seringueiros e indígenas fortaleceu nossa resistência. Foi assim que conquistamos a Reserva Chico Mendes e outras reservas espalhadas pela Amazônia. ”

” Eu sou católica e militante da pastoral da juventude. Temos um compromisso como jovens frente às mudanças climáticas.  Todo mundo em algum nível conhece as lutas dos seringueiros, a luta de Chico Mendes e assim, quero relembrar que esses movimentos começaram na década de 70, então a galera já se organizava mediante as ameaças de morte. Foi a igreja que apoiou e conseguiu dar esse suporte aos seringueiros na época, mas nos deparamos depois com o avanço do neoliberalismo, pentecostalismo e do fundamentalismo, então temos uma realidade muito diferente, a gente tem outra ideia de igreja que não é mais essa igreja popular, não é mais essa igreja que apoia a luta dos movimentos.’’ afirmou Thalita Vasconcelos, do Comitê Chico Mendes. Ela afirma que o Acre é um dos estados mais evangélicos do país e algumas igrejas orientam as pessoas a não se envolverem com os movimentos sociais: ‘Hoje estamos vivendo uma ameaça na RESEX, apoiada pelo discurso das pessoas que defendem o individualismo. Como iremos resgatar a perspectiva comunitária vivendo tudo isso?

Rogério, representante da RESEX, ressaltou: ‘’ O nosso povo aqui está fragilizado. É difícil sobreviver, mas estamos sempre lutando. Temos uma fonte de renda diferenciada de antigamente, com a criação de gado, temos também o Ateliê da Floresta, que é uma iniciativa da própria reserva, além da plantação de legumes e produtos que nos fortalecem, como a borracha e a castanha. Precisamos sempre seguir em união com os povos indígenas, quilombolas, ativistas espalhados pelo mundo afora, e precisamos que a parte política entenda nossos territórios e contribua para a evolução dele.’’

Esse é o 9° Tapiri que estamos passando, fazendo essa escuta, ouvindo as impunidades e ampliando essas vozes, porque as lutas estão em todos os territórios, quer sejam seringueiros, quilombolas, indígenas, mulheres, todos passando por suas lutas. E quando a CESE reúne esse grupo de pessoas, a gente não está aqui como turista, estamos aqui porque queremos compromisso com essa causa. Cada vez que ouvimos, mas indignados ficamos, porque quando a gente perder a capacidade de se indignar, nós perdemos toda a nossa humanidade’, finaliza Sônia Mota. 

Ao final da roda, Raimundão salientou:  “Para mim, o TAPIRI foi um momento de renovação das minhas convicções de que eu estou no caminho certo, trabalhando pela organização e mobilização das populações rurais, principalmente aqui dentro da reserva”.

O Tapiri reafirma seu compromisso com a justiça socioambiental, a preservação da Amazônia e a defesa dos direitos dos povos da floresta.

  • Fotos da roda de diálogo na Reserva Chico Mendes. Acesse aqui
  • Fotos dos dias 14 e 15 de julho – Tapiri Acre. Acesse aqui

Fotos: Samuel Arara (Rede de Jovens Comunicadores da Coiab/AC) e Bruno Medin- Defensoria Pública / AC

Conheça outros Tapiris realizados pela CESE nos últimos 2 anos:

VÍDEOS

Resumo dos TAPIRIS de 2022 a 2024 e o TAPIRI no Fórum Social Panamericamo – FOSPA

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